Em um bom jogo de futebol, o primeiro gol nem sempre é o mais bonito, nem o melhor. E, algumas vezes, ele pode ser até feio, feito de canela, de peito ou de cabeça, meio desajeitado. Mas se for o primeiro gol feito pelo jogador, ele pode se redimir nos seguintes, caprichando mais no estilo das próximas jogadas. Esse trecho acima não serve apenas para jogos de futebol, mas também para uma determinada marca alemã (Volkswagen) com seu carro, que passou por esse dilema: o primeiro não foi tão bom assim.
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Essa tal marca alemã vendia a rodo um produto pra lá de consagrado (Fusca), desenvolvido antes da Segunda Grande Guerra, que caía como uma luva para o mercado brasileiro: muito robusto, de manutenção facílima, peças baratas e que encarava nossas peculiaridades de clima, asfalto e estilos de uso com bravura. Só que esse carro já estava obsoleto em meados dos anos 1970, e, apesar de vender bem, precisava ser substituído.
Estilo do Gol 1300 era charmoso e moderno, bem diferente das formas arredondadas do Fusca, mas o comportamento decepcionava
Um novo precisava ser criado para entrar no lugar desse valente carrinho, que conquistou o coração dos brasileiros. Nessa mesma época, os alemães viam crescer as vendas de um outro valente carrinho de uma marca italiana (Fiat 147), bem mais moderno, econômico e espaçoso. Ali, eles acreditaram que poderiam fazer um novo produto naqueles moldes, unindo a modernidade de um projeto novo com a robustez mecânica do carro veterano, especialmente motor e câmbio. Também teriam seu moderno hatch 1300, assim como a rival italiana.
Não tiveram dúvidas: pegaram o antigo motor 1300 a ar do modelo pré-guerra e mandaram para a poderosa Porsche, lá na Europa. Lá, esse motor seria aperfeiçoado para que ficasse à altura daquele que movia o carro italiano da concorrência. A competência dos alemães da Porsche foi incontestável: colocaram naquele propulsor dois cabeçotes com câmaras hemisféricas, válvulas inclinadas para melhorar a eficiência da combustão, fizeram uma ventoinha frontal baseada nos seus poderosos esportivos 911, e desenvolveram um sistema de alimentação com dois carburadores, diminuindo as perdas na admissão.
Estava pronto aí o motor do novo hatch que substituiria o veterano carrinho dos anos 1930, carregando a grife da preparação Porsche. Tudo isso na teoria, já que na prática, vários sabichões apareceram para reduzir os custos das melhorias da Porsche. Eliminaram os dois carburadores, adotando o mesmo único com coletor de admissão longo de antes. Ainda com medo da qualidade da nossa gasolina, que oscilava muito na época, “derrubaram” os (pelo menos) 7,8:1 de taxa de compressão recomendada pelos alemães de Stuttgart para 6,8:1.
Motor 1300 do Gol passou por ajustes pela Porsche, mas na hora da montagem, removeram parte das melhorias
Como “estragaram” quase tudo que a Porsche havia feito, o velho motor 1300 estava novamente quase que em sua estaca zero de quando equipava o velho carrinho de antes da guerra. Ao invés dos 46 cv originais, o “novo motor” não passou dos 50 cv, na mesma rotação (4600 rpm). Tanto trabalho e tanto dinheiro para raquíticos 4 cv! Claro que quando o novo carro foi lançado, aquele do primeiro gol no futebol, seus 4 cv a mais eram diluídos nos 30 kg extras do peso em ordem de marcha. Ou seja, trocaram seis por meia-dúzia: ganhou 4 cv, mas também engordou 30 kg.
O resultado prático é que o lançamento do novo carro com a mesma cilindrada do seu concorrente italiano foi uma catástrofe. Ele acelerava de 0 a 100 km/h partindo da imobilidade em quase 30,3s e não chegava aos 125 km/h de velocidade máxima, de acordo com seu primeiro teste na Revista Quatro Rodas de maio de 1980. Esses resultados eram quase idênticos aos apresentados pelo DKW Belcar 1961, em um teste da mesma publicação. Ou seja, o novo carro tinha a mesma performance de outro 20 anos mais velho. Até tinha alguma evolução frente ao seu antecessor, do projeto de antes da guerra, mas comia poeira do rival italiano.
Eu mesmo, encantado com as linhas modernas desse novo carro da marca alemã, adquiri um no início de 1981. Vermelho “bombeiro”, seminovo, fabricado em 1980, completo e por um preço bem atraente. Depois que comecei a utilizar o carro no meu dia-a-dia, descobri o motivo do seu antigo proprietário tê-lo vendido tão novo, com baixa quilometragem e pouco tempo de uso. Ele tinha performance deplorável!
Só para que se tenha uma ideia, nos instrumentos do seu painel havia um econômetro, que nada mais era que um vacuômetro do coletor de admissão com a escala verde/amarela/vermelha. Quando acelerava-se desnecessariamente, o ponteiro ia para o vermelho. No amarelo, era uma indicação para maneirar a tocada, e no verde, sua forma de condução mais econômica. O motor era tão fraco e ruim de torque que era impossível dirigi-lo sem manter o ponteiro do econômetro fora da faixa vermelha. Faixa verde? Só ladeira abaixo, e sem colocar o pé no acelerador.
Interior do Gol 1300 trazia econômetro no quadro de instrumentos, mas ponteiro nunca ficava no verde
Fazendo mais uma analogia ao futebol, essa foi certamente uma bola-fora da marca alemã, tão consagrada no nosso país. E, olha, na época a fábrica produzia um motor da mesma família do seu hatch mais luxuoso, moderno e projetado pela Audi, com a capacidade cúbica dos mesmos 1.300 cm³, só que arrefecido a água e destinado para exportação. Mas alguém lá dentro pensou que o bom mesmo era usar o velho 1300 a ar, igual ao do veterano carro do pré-guerra. Um chute para bem longe do gol…
A sorte dos alemães da fábrica brasileira é que eles foram rápidos. Logo perceberam seu erro, e já em 1981 lançaram a versão a álcool desse novo carro com dois carburadores, seguindo uma receita parecida com aquela da Porsche. Sem dúvidas, essa tal versão a álcool tinha problemas, assim como todos os motores movidos pelo combustível de cana na época, mas os dois carburadores já faziam toda a diferença na performance do hatch.
A salvação do novo carro começou a se concretizar mesmo com a chegada da versão 1.6 com dupla carburação, ainda a ar, fazendo suas vendas aumentarem significativamente. Esse carro, graças a sua agilidade, fez com que a imagem daquele novo produto, sucessor do queridinho dos brasileiros, se concretizasse. Dali em diante, ele foi decolando sem parar nas vendas, e se tornou um sucesso: ficou 27 anos na liderança do mercado e teve 8,5 milhões de unidades produzidas no Brasil, das quais 7 milhões foram vendidas em nosso mercado. Ficou 42 anos em produção!
Mas nunca é tarde para lembrar: se dependesse daquele primeiro, 1300 a ar, esse carro não teria durado mais que três ou quatro anos no mercado brasileiro. E ele quase afundou as pretensões da marca no esquema de substituir o velho carrinho pré-guerra por um hatch mais moderno e eficiente. Erraram feio no primeiro gol, mas depois aprenderam a jogar bonito. Com direito a gol de placa.
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Essa tal marca alemã vendia a rodo um produto pra lá de consagrado (Fusca), desenvolvido antes da Segunda Grande Guerra, que caía como uma luva para o mercado brasileiro: muito robusto, de manutenção facílima, peças baratas e que encarava nossas peculiaridades de clima, asfalto e estilos de uso com bravura. Só que esse carro já estava obsoleto em meados dos anos 1970, e, apesar de vender bem, precisava ser substituído.
Estilo do Gol 1300 era charmoso e moderno, bem diferente das formas arredondadas do Fusca, mas o comportamento decepcionava
Um novo precisava ser criado para entrar no lugar desse valente carrinho, que conquistou o coração dos brasileiros. Nessa mesma época, os alemães viam crescer as vendas de um outro valente carrinho de uma marca italiana (Fiat 147), bem mais moderno, econômico e espaçoso. Ali, eles acreditaram que poderiam fazer um novo produto naqueles moldes, unindo a modernidade de um projeto novo com a robustez mecânica do carro veterano, especialmente motor e câmbio. Também teriam seu moderno hatch 1300, assim como a rival italiana.
Motor de Fusca no Gol
Não tiveram dúvidas: pegaram o antigo motor 1300 a ar do modelo pré-guerra e mandaram para a poderosa Porsche, lá na Europa. Lá, esse motor seria aperfeiçoado para que ficasse à altura daquele que movia o carro italiano da concorrência. A competência dos alemães da Porsche foi incontestável: colocaram naquele propulsor dois cabeçotes com câmaras hemisféricas, válvulas inclinadas para melhorar a eficiência da combustão, fizeram uma ventoinha frontal baseada nos seus poderosos esportivos 911, e desenvolveram um sistema de alimentação com dois carburadores, diminuindo as perdas na admissão.
Estava pronto aí o motor do novo hatch que substituiria o veterano carrinho dos anos 1930, carregando a grife da preparação Porsche. Tudo isso na teoria, já que na prática, vários sabichões apareceram para reduzir os custos das melhorias da Porsche. Eliminaram os dois carburadores, adotando o mesmo único com coletor de admissão longo de antes. Ainda com medo da qualidade da nossa gasolina, que oscilava muito na época, “derrubaram” os (pelo menos) 7,8:1 de taxa de compressão recomendada pelos alemães de Stuttgart para 6,8:1.
Motor 1300 do Gol passou por ajustes pela Porsche, mas na hora da montagem, removeram parte das melhorias
Como “estragaram” quase tudo que a Porsche havia feito, o velho motor 1300 estava novamente quase que em sua estaca zero de quando equipava o velho carrinho de antes da guerra. Ao invés dos 46 cv originais, o “novo motor” não passou dos 50 cv, na mesma rotação (4600 rpm). Tanto trabalho e tanto dinheiro para raquíticos 4 cv! Claro que quando o novo carro foi lançado, aquele do primeiro gol no futebol, seus 4 cv a mais eram diluídos nos 30 kg extras do peso em ordem de marcha. Ou seja, trocaram seis por meia-dúzia: ganhou 4 cv, mas também engordou 30 kg.
O resultado prático é que o lançamento do novo carro com a mesma cilindrada do seu concorrente italiano foi uma catástrofe. Ele acelerava de 0 a 100 km/h partindo da imobilidade em quase 30,3s e não chegava aos 125 km/h de velocidade máxima, de acordo com seu primeiro teste na Revista Quatro Rodas de maio de 1980. Esses resultados eram quase idênticos aos apresentados pelo DKW Belcar 1961, em um teste da mesma publicação. Ou seja, o novo carro tinha a mesma performance de outro 20 anos mais velho. Até tinha alguma evolução frente ao seu antecessor, do projeto de antes da guerra, mas comia poeira do rival italiano.
Eu mesmo, encantado com as linhas modernas desse novo carro da marca alemã, adquiri um no início de 1981. Vermelho “bombeiro”, seminovo, fabricado em 1980, completo e por um preço bem atraente. Depois que comecei a utilizar o carro no meu dia-a-dia, descobri o motivo do seu antigo proprietário tê-lo vendido tão novo, com baixa quilometragem e pouco tempo de uso. Ele tinha performance deplorável!
Gol 1300 a ar foi uma bola fora
Só para que se tenha uma ideia, nos instrumentos do seu painel havia um econômetro, que nada mais era que um vacuômetro do coletor de admissão com a escala verde/amarela/vermelha. Quando acelerava-se desnecessariamente, o ponteiro ia para o vermelho. No amarelo, era uma indicação para maneirar a tocada, e no verde, sua forma de condução mais econômica. O motor era tão fraco e ruim de torque que era impossível dirigi-lo sem manter o ponteiro do econômetro fora da faixa vermelha. Faixa verde? Só ladeira abaixo, e sem colocar o pé no acelerador.
Interior do Gol 1300 trazia econômetro no quadro de instrumentos, mas ponteiro nunca ficava no verde
Fazendo mais uma analogia ao futebol, essa foi certamente uma bola-fora da marca alemã, tão consagrada no nosso país. E, olha, na época a fábrica produzia um motor da mesma família do seu hatch mais luxuoso, moderno e projetado pela Audi, com a capacidade cúbica dos mesmos 1.300 cm³, só que arrefecido a água e destinado para exportação. Mas alguém lá dentro pensou que o bom mesmo era usar o velho 1300 a ar, igual ao do veterano carro do pré-guerra. Um chute para bem longe do gol…
A sorte dos alemães da fábrica brasileira é que eles foram rápidos. Logo perceberam seu erro, e já em 1981 lançaram a versão a álcool desse novo carro com dois carburadores, seguindo uma receita parecida com aquela da Porsche. Sem dúvidas, essa tal versão a álcool tinha problemas, assim como todos os motores movidos pelo combustível de cana na época, mas os dois carburadores já faziam toda a diferença na performance do hatch.
A salvação do novo carro começou a se concretizar mesmo com a chegada da versão 1.6 com dupla carburação, ainda a ar, fazendo suas vendas aumentarem significativamente. Esse carro, graças a sua agilidade, fez com que a imagem daquele novo produto, sucessor do queridinho dos brasileiros, se concretizasse. Dali em diante, ele foi decolando sem parar nas vendas, e se tornou um sucesso: ficou 27 anos na liderança do mercado e teve 8,5 milhões de unidades produzidas no Brasil, das quais 7 milhões foram vendidas em nosso mercado. Ficou 42 anos em produção!
Mas nunca é tarde para lembrar: se dependesse daquele primeiro, 1300 a ar, esse carro não teria durado mais que três ou quatro anos no mercado brasileiro. E ele quase afundou as pretensões da marca no esquema de substituir o velho carrinho pré-guerra por um hatch mais moderno e eficiente. Erraram feio no primeiro gol, mas depois aprenderam a jogar bonito. Com direito a gol de placa.